Como o ChatGPT reforça o papel fundamental do professor no processo de ensino-aprendizagem
As Inteligências Artificiais (IA) estão entre nós desde os anos 1950. Ao longo das décadas evoluíram e as Machine Learnings passaram a fazer parte do nosso cotidiano sem sequer percebermos! Quando assistimos a streaming de vídeo, quando pedimos transporte por um aplicativo, quando realizamos operações financeiras com internet banking e quando vemos aparecer no nosso feed da rede social anúncios patrocinados de acordo com nossos interesses momentâneos, estamos vendo a ação de uma Inteligência Artificial do tipo Machine Learning.
Em outras palavras, quanto mais (nós e os outros usuários) interagimos com a ‘máquina’ – o programa, a plataforma, o aplicativo –, mais os algoritmos entendem/aprendem com estes dados e tomam decisões a partir destas evidências. Até mesmo os e-mails que vão, automaticamente, para a caixa de spam são triados por uma Machine Learning.
O avanço mais recente das IA é a chamada Deep Learning, baseada na arquitetura de ‘redes neurais’. Daí que chegamos ao ponto de termos hoje um acesso público direto a vários tipos de Inteligência Artificial (que geram textos, imagens, vídeos, músicas etc.) sem a necessidade de aprendermos uma linguagem de programação específica. Podemos falar com ela, simplesmente, por um chat, em nosso próprio idioma e linguagem correntes. Tal qual já fazemos cotidianamente, via aplicativos de mensagem, atendimentos de empresas nos sites etc.
Daí a difusão desde o início deste ano (2023) de tantas IA. Temos para todos os gostos e finalidades: geração de imagens, de vídeos, de músicas, de textos. Mas, sem dúvida, para a Educação, pelo menos, o grande hype é do ChatGPT, da OpenAI, nascida como instituto sem fins lucrativos para o desenvolvimento de IA e, agora, depois do boom – em 5 dias o ChatGPT atingiu 1 milhão de usuários em todo o mundo – recebeu um aporte multibilionário da Microsoft.
Esse ‘GPT’ é que nem o Google? Perguntou meu Pai
Hoje em dia, mesmo pessoas menos familiarizadas com tecnologia – por opção ou por oportunidade mesmo – já utilizam efetivamente o Google como buscador de informações. Meu Pai, que completa 80 anos este ano, é uma destas pessoas. Neófito no uso de internet, vem aprendendo dia a dia, empolgado com cada nova possibilidade, desde entretenimento até aprendizado. E, para ele, nestas condições, a grande descoberta foi o Google, como meio de ‘achar o que quer pelo mundo’, diz ele. Relojoeiro com experiência da vida toda, descobriu novas técnicas e soluções, o que, para ele, é surpreendente e animador, a esta altura, aprender algo novo da profissão em que é mestre.
Assim, como se estivesse falando para as pessoas na condição do meu Pai, eu diria – a título de (super) simplificar a compreensão – como o ChatGPT é diferente do Google porque ele não só indexa as informações que solicitamos/buscamos. Vai além: é como se (veja bem, não disse que é, estou fazendo uma simplificação, usando uma analogia) ele já lesse para nós todos os links indexados num resultado de busca do Google, relacionasse as informações e fosse capaz de nos dar uma resposta já elaborada. Na verdade, várias respostas diferentes, se assim desejarmos. Afinal, se formos refinando a conversa, fazendo novas perguntas, ele é capaz de revisitar as informações e ir calibrando novas respostas.
Para nós, educadores, é importante notarmos o que significa o ChatGPT ser um ‘modelo de processamento de linguagem natural’ – tecnicamente, uma Inteligência Artificial do tipo LLM (Large Language Model). Resumindo muito, sua grande capacidade está em ler muito e rápido, ter boa memória e conseguir realizar várias conexões entre as informações que absorve com um grande poder de síntese. Poderíamos dizer que ele é muito bom em pesquisar, relacionar e sintetizar. Trazendo para nossa linguagem de educadores, fatos e dados – como os objetos de conhecimento dos nossos componentes curriculares – podem ser facilmente conhecidos, lembrados e comparados. A forma de expressá-los, em forma de ‘linguagem’ natural, pode fazê-lo parecer uma pessoa inteligente, com muita cultura.
Entretanto, como bem sabemos, lembrar todos os conteúdos não é, nem de longe, o máximo da capacidade humana, bem como não é o objetivo do ensino, pois não representa aprendizagem.
Inteligente como? Quanto?
Ser inteligente – da forma como passamos a compreender a inteligência, a partir dos anos 1980, com a Teoria das Múltiplas Inteligências, de Howard Gardner –, vai muito além de ser capaz de armazenar na memória (e conseguir acessar) grandes quantidades de informações e/ou ser capaz de fazer cálculos com facilidade e rapidez. Na teoria de Gardner estas seriam as chamadas inteligências linguística e lógico-matemática.
Se olharmos para o ChatGPT à luz das Múltiplas Inteligências de Gardner, não veremos destaque, então, nas Inteligências espacial, corporal-cinestésica, musical, interpessoal, intrapessoal nem na naturalista. Consciência e experiências pessoais, nada. Não fazem parte do conjunto de habilidades que o ChatGPT tenha ou possa vir a desenvolver.
Isto tudo sem falar da prevalência atual de pensarmos educação para além da retenção de dados, mas sim com o desenvolvimento de habilidades e de competências para a resolução de situações-problema e dos próprios problemas complexos do mundo contemporâneo.
Minha análise até aqui, portanto, é que as preocupações iniciais de que o ChatGPT possa ser utilizado por alunos para burlar suas obrigações escolares – e que meios precisam ser pensados para evitar isso –, podem ser repensadas. O ChatGPT não é capaz de garantir o 10,0 em tudo. A não ser que todas as atividades e avaliações estejam restritas à capacidade de memorização de informações.
A esta altura, falando em Inteligência, parece inevitável lembramos da antiga, e clássica, ideia de ‘medir’ a inteligência por meio de uma escala, o QI (Quociente de Inteligência). Escala esta que o tempo mostrou não ser suficiente para demonstrar a complexidade da capacidade humana. Vide a própria Teoria das Múltiplas Inteligências! Há tipos de inteligências para as quais não se pode aferir um QI clássico.
E mais: trabalhos como o de Angela Duckworth, com sua Escala de Determinação, serviram para demonstrar que, muitas vezes, o QI não é a medida mais relevante para a obtenção de resultados. Segundo ela, a capacidade de ter/manter paixão e perseverança em determinada tarefa, pode ser mais determinante para a construção de um resultado do que apenas o QI. Novamente chegamos ao ponto de entendimento que a aprendizagem relevante é muito mais que a memorização de informações!
Quais são nossos Objetivos de Aprendizagem mesmo?!
A Taxonomia de Bloom tem sido sempre uma baliza importante para o estabelecimento dos objetivos de aprendizagem quando pensamos nossos planejamentos e fazemos nossas escolhas de metodologia. Acontece que, se olharmos para seus dois domínios – dos processos cognitivos e do conhecimento – não fica evidente, mais uma vez, e de forma diferente, que o ChatGPT, por si, não pode garantir as realizações de todas as tarefas de um aluno? Pelo simples fato de o ChatGPT não conseguir ser eficaz em todos os níveis propostos pela Taxonomia! Ele é, sem dúvidas, muito bom para realizar atividades propostas nos níveis mais baixos do domínio dos processos cognitivos. Entretanto, à medida que avançarmos para os níveis mais altos, sua competência reduz-se drasticamente.
A Saber: lembrar e entender são níveis de desempenho menos exigentes. Diríamos que constituem as questões e atividades ditas fáceis, ou seja, aquela que a maioria dos alunos deve estar apto a responder. Nestas aqui o ChatGPT consegue gabaritar, afinal, a exigência é de leitura e de memória, basicamente.
Mais adiante, temos os níveis de aplicação e análise, que constituem as questões e atividades de nível intermediário. Aplicar e analisar, além de exigir os processos cognitivos anteriores – de leitura e de memória – demandam a percepção e o entendimento das relações entre as informações e até a organização de procedimentos para a resolução das situações-problema. Neste nível, se boas instruções não forem dadas ao ChatGPT – afinal, lembre-se, seu funcionamento baseia-se num chat, ou seja, numa conversa. Assim, é a partir dos inputs do humano (o Professor ou o aluno, no caso) que seus outputs são gerados. Ele poderá fornecer devolutivas confusas, imprecisas, até mesmo incorretas, como se tem comprovado.
Finalmente, nos níveis mais exigentes do domínio de processos cognitivos, temos de avaliar e criar. Aqui, a capacidade de realizar julgamentos e de ter tomadas de decisão, além de demonstrar padrões entre informações não relacionadas antes e a criação de propostas inovadoras é a exigência.
Neste ponto, as devolutivas requerem criatividade, imaginação, determinação... aqui, as inteligências linguística e lógico-matemática por si só não dão conta de produzir resultados satisfatórios. Conclusão: Aqui o ChatGPT não conseguiria realizar as tarefas pelo aluno.
Neste ponto da leitura você deve ter pensado, ‘mas, Idelfranio, na lógica de aprendizagem, uma progressão é necessária para que o aluno efetivamente aprenda... Não se pode explorar apenas os níveis mais elevados de Bloom’. Concordo, claro! E, aqui, mais uma vez, vejo um argumento para dizer o quanto o Professor continua sendo – me arrisco até a dizer, mais que antes – importante para a construção do conhecimento dos alunos.
Que tal se, nas atividades mais básicas – pesquisa, coleta de informações, interpretação etc. –, a atividade proposta fosse descobrir quais perguntas são relevantes na situação (em vez de dar/encontrar respostas específicas para perguntas prontas)? Afinal, relacionar dados e fatos não é conhecimento, mas reconhecer seus contextos e aplicações, sim.
Mais uma ideia, partindo agora do trabalho de Wiggins & McTighe, conhecido como Understanding by Design. Segundo os autores, podemos pensar em seis facetas da compreensão quando pensamos em mensurar se nosso aluno aprendeu, de fato: conseguir explicar com suas próprias palavras aquilo que aprendeu, conseguir interpretar outros contextos a partir daquilo que aprendeu, conseguir aplicar o que aprendeu na resolução de situações de outra categoria, conseguir pensar em perspectiva, conseguir entender e respeitar ideias discordantes e pensar sobre sua própria capacidade e forma de aprender (metacognição).
Planejar atividades pedagógicas mais básicas, tornadas relevantes pela perspectiva das Seis Facetas da Compreensão, de Wiggins & McTighe, pode nos levar da dimensão dos processos cognitivos para a dimensão do conhecimento, na Taxonomia de Bloom. Assim, as atividades podem progredir desde a relação de fatos e conceitos até a aplicação de procedimentos, chegando à metacognição (ao processo de pensamento sobre a própria forma e capacidade de aprender).
Fonte: Iowa State University
Finalmente, olhando para as habilidades mais importantes para o trabalho na próxima década, listadas pelo World Economic Forum (WEF), Criatividade e Resolução de Problemas Complexos estão no topo da lista. Assim, mais do que ‘ter conhecimento’, a capacidade de ‘adquirir conhecimento’ e aplicá-lo, produzindo soluções inéditas para problemas ainda não resolvidos é a grande capacidade que se quer desenvolver.
Considerando que Imaginação e Criatividade, segundo as neurociências, tratam-se de processos cognitivos superiores, enquanto Atenção e Memória, processos cognitivos básicos, temos mais uma oportunidade de entendermos o quanto o Professor é vital para que os alunos tenham boas trilhas de aprendizagem a seguir. Isso, sozinho, o ChatGPT não é capaz de lhes oferecer!
Em quais Pilares estamos alicerçando nossa Educação?
Desde o relatório ‘Educação: um Tesouro a Descobrir’ (Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI para a Unesco – presidida por Jacques Delors –, de 1999) temos os Pilares da Educação como norteadores para uma educação cidadã, além dos objetivos de aprendizagem cognitiva.
Assim, desde a definição dos Objetos de Conhecimento a trabalhar em cada série, da Matriz de Habilidades e Competências correspondentes, dos Objetivos de Aprendizagem e das Práticas Pedagógicas (Metodologias) a utilizar, estes 4 Pilares da Educação (da Unesco, como ficaram conhecidos) surgem como definidores. São eles: Aprender a Conhecer (adquirir instrumentos de compreensão), Aprender a Fazer (agir sobre o meio), Aprender a Conviver (cooperação com os outros em atividades humanas) e Aprender a Ser (o aprender que integra todos os outros).
Refletindo sobre as capacidades do ChaGPT, pelo que vimos até aqui, à luz dos 4 Pilares, conseguimos entender que, a partir da sua – autodeclarada – proficiência ele possa contribuir bem com o primeiro e, talvez, com o segundo. Entretanto, Aprender a Conviver e Aprender a Ser é bem difícil de imaginar para uma IA. Seu funcionamento carece de algoritmos e, convenhamos, interação, convivência e relacionamento não são passíveis de serem resumido a um ‘conjunto de passos que garantem um resultado’!
A capacidade do Professor de imaginar oportunidades de aprendizado que levem os alunos a colocarem seus aprendizados em prol do coletivo, da conservação da vida e do meio, o ChatGPT não tem. Ele pode ser ferramenta, mas não substituto. Amplia o poder de pesquisar, encurta o tempo de encontrar respostas específicas, mas ele próprio é incapaz de Aprender a Ser e a Conviver.
ChatGPT como Metodologia Ativa? Que tal?!
Revendo tudo o que pensamos até aqui, conseguimos, agora, listar o que o ChatGPT não é capaz de fazer por nossos alunos. Esta visão me parece fundamental para nos ajudar a entendermos a continuidade da relevância do Professor com ênfase em seu protagonismo docente.
Neste ponto em que estamos do hype da inovação, em que só se fala nisso e as análises sobre os impactos nas carreiras e nas profissões podem aterrorizar, assentar o sentimento de confiança pode ser fundamental para, passado o susto, passarmos ao aprendizado.
A proliferação de ferramentas de IA e seu acesso generalizado pelo público comum é como uma Caixa de Pandora. Entre a carta dos especialistas pedindo interrupção das pesquisas e do desenvolvimento da IA por seis meses (Pause Giant AI Experiments: An Open Letter) e a carta do Bill Gates falando falando do ‘Início da Era da IA’ (The Age Of AI has begun), vejo a segunda com mais entendimento da realidade.
Assim, podemos entender que ganhamos mais uma ferramenta tecnológica que podemos incorporar em nossas práticas. Uma ferramenta que pode permitir autonomia, gerar protagonismo e exigir responsabilidade. Em outras palavras, uma ferramenta para funcionar como uma nova Metodologia Ativa.
Vai nos exigir aprender coisas novas, desenvolver novas habilidades? Sim. Várias. Certamente. Foi assim com todas as inovações tecnológicas surgidas nas últimas décadas, da introdução do computador nas salas de aula ao uso da internet. Existe a particularidade de ser uma inovação disruptiva, o que exige, sem apelação, mudança de comportamentos, upskilling, reskilling…
E, qual a novidade nisso? É a premissa do ofício: Aprender Mais para Ensinar Melhor.
Sobre o autor:
-
Idelfranio Moreira
Gestor, SAS Educação
*Imagem inicial do texto gerada com a DALL·E 2, da OpenAI, com o prompt 'a human teacher and a robot like a pupil, digital art'.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Bett Brasil.
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