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Corda muito esticada

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Corda muito esticada
Educadores enfrentam dificuldade para a readaptação às rotinas escolares, tendo de se equilibrar entre seus problemas de saúde mental e os dos estudantes


 

Desde 2019, Renata dá aulas de ciências para alunos de um bairro da periferia de uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Veio a pandemia e suas rotinas (e as de todo o professorado) mudaram drasticamente.

Após uma pesquisa para entender quais alunos teriam smartphones ou computadores para acessar as aulas, notou que menos de 10% das tarefas propostas retornavam.

A pressão pela continuidade das atividades passou a ser resumida em numerosas lives de treinamento e planejamento. Era preciso se organizar para conseguir participar dos encontros on-line, ao mesmo tempo que as dinâmicas tinham de ser ministradas.

Antes da implementação de uma plataforma adequada, os conteúdos e contatos foram estabelecidos utilizando seu WhatsApp pessoal. Recorda-se de ser acordada, de madrugada, com pais de alunos relatando sua insatisfação com o momento e pedindo soluções à docente. Chegou a apresentar aulas por quatro horas para um único estudante on-line.

Foram meses muito difíceis, em que tinha de conviver com os desafios pedagógicos, ao mesmo tempo que ouvia piadinhas de outras pessoas, dizendo que os professores eram privilegiados, pois estavam “sem trabalhar”.

Em outubro de 2021, os educadores da rede municipal receberam uma semana de folga. Ela tinha a impressão de que nem seis meses de férias seriam suficientes para aliviar aquilo que seu corpo sentia. No primeiro dia do recesso, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) transitório e teve de ser hospitalizada.

Ela se recuperou, mas tem um sentimento de que o alto nível de estresse a que estava submetida pode ter sido o causador desse problema de saúde.

Esse é apenas um dos muitos exemplos de relatos recebidos pelo Núcleo de Estudo em contextos do Desenvolvimento Humano: Família e Escola (Nedefe), grupo de pesquisa do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

“É um projeto de extensão focado na saúde mental dos professores durante e após a pandemia da Covid-19, que pudesse atender à comunidade do município e região, naquelas que são consideradas suas demandas essenciais”, pontua a professora Naiana Patias, coordenadora do núcleo.

Momento difícil

O programa surgiu como necessidade no ano de 2020, quando os pesquisadores verificaram, durante conversas com professores da educação básica, a falta de um espaço de fala e escuta, sem julgamentos, sobre a saúde mental do docente.

Inicialmente, em conjunto com outras docentes do departamento, foi desenvolvida uma pesquisa on-line, em que os professores e professoras apontavam tanto as questões físicas do ambiente de trabalho quanto as relacionadas ao conhecimento, docência, necessidades e relações interpessoais. “Além de toda a informação coletada, passou a ser um instrumento que avalia os sintomas da síndrome de burnout (ler mais sobre o assunto a seguir)”, explica a pesquisadora.

Esses profissionais passaram a conhecer e a se aproximar desse ambiente, num momento delicado para o seu cotidiano. Desde o início, ressalta, ocorreu essa busca por um lugar livre, propício para o compartilhamento de situações e vivências com psicólogos da UFSM. Foi nessas oportunidades que os pesquisadores puderam ouvir, por exemplo, o relato de uma professora de educação infantil, Elenara, tratando da insegurança da fase em que vivia. 

“A minha saúde mental, com certeza, está afetada diante de todos os problemas que enfrentamos diariamente com os alunos e familiares; nos sentimos inseguros em certas situações, por não ter clareza de como agir e o que fazer. Acabamos agindo por instinto ou com o coração”, desabafou.

Essas escutas eram feitas, inicialmente, de forma remota, via internet. Posteriormente, passaram a ser de maneira presencial e, hoje, contam com várias escolas parceiras que recebem a atuação in loco do Nedefe.

Mais um fator de risco

Na opinião de Naiana Patias, a pandemia somou- se a uma série de dificuldades que a classe do professorado já enfrentava. “O problema veio como algo a mais para um grupo que já sofria inúmeras questões, uma categoria que já estava adoecida, que historicamente sofre desafios como remuneração baixa, falta de reconhecimento, excesso de trabalho, entre outros”, diz.

Durante os encontros virtuais na época do isolamento social, o grupo de psicólogos ouviu depoimentos sobre as dificuldades enfrentadas pelos estudantes e seus familiares, problemas sobre a falta de separação entre os espaços de trabalho e doméstico, a abrupta inserção nos recursos tecnológicos – e, também, com a escassez deles. “Ouvimos casos de docentes que revezavam o único computador da casa entre as atividades pedagógicas e as tarefas dos filhos”, conta.

Após praticamente um ano de retorno ao presencial, o Nedefe percebe uma situação delicada quanto ao bem-estar desses profissionais. “Aqueles que não se afastaram por questões de saúde estão passando por um processo de sintomas como ansiedade, depressão, irritabilidade, insônia, momentos difíceis de se enfrentar”, relata.

Agressividade

Do ponto de vista da relação com a sala de aula, docentes falam sobre os desafios em lidar com questões comportamentais nos estudantes, que acabam por interferir no seu fazer pedagógico.

“Alunos têm se mostrado mais agressivos, ansiosos, e os professores têm de encarar situações complexas, com casos que se assemelham com os próprios sintomas que esses profissionais vêm sentindo”, diz.

Existe o caso de uma escola onde todos os integrantes de uma turma procuraram, em mais de uma ocasião, a sala da diretora, relatando crises de ansiedade.

Patias fala, também, de casos de empatia e aprendizado, como o de uma professora que, nas rotinas diárias com os estudantes, utiliza as estratégias que ela aprendeu com seu próprio diagnóstico de ansiedade, para orientar e acalmar algum aluno que esteja passando pelo mesmo problema.

“Percebemos a importância das relações interpessoais, do apoio que as pessoas recebem dos professores, dos colegas. Precisamos do outro para sobreviver”, reforça.

“Ninguém aprende com medo”

Em uma recente entrevista concedida sobre as dificuldades enfrentadas pelos docentes, a diretora de conteúdo da Bett Brasil, Adriana Martinelli, usou a seguinte expressão: “Ninguém aprende em situação de medo e alta ansiedade”.

Na sua visão, a aprendizagem é um processo que acontece prioritariamente em uma relação dialógica, com interações entre as pessoas, mediadas por informações e conhecimento. Quanto mais essa relação estiver pautada na confiança, melhor será a abertura para o aprendizado.

“O momento em que estamos trouxe alívio, por um lado, com a volta para a zona de conforto da sala de aula presencial, porém, após essa experiência, as pessoas não são as mesmas – mais do que nunca, é necessário resgatar as relações de confiança entre todos os atores da escola”, reforça.

Para a especialista, conviver harmonicamente com o conceito de incerteza pode ser considerado a mais necessária habilidade dos dias atuais. “Estar aberto ao imprevisto, lidar com alterações rápidas e necessárias são competências fundamentais para a educação, que sempre nos mostrou que a única certeza é a mudança”, afirma.

O professor deve focar suas lentes para um olhar menos rígido e resistente, e mais otimista, flexível, aberto e curioso. “Gosto de provocar os docentes a colocar em seu vocabulário interno diário o termo: ‘e se’? Como se ele fizesse autorreflexões constantes mediante as situações do dia a dia, provocando sua mente a imaginar e permitir o diferente”, salienta.

A BNCC e a formação

Martinelli é enfática ao dizer que o desenvolvimento do docente, em especial o pessoal, tem uma relação “mais que intrínseca” na condução de atividades pedagógicas em salas de aula fragilizadas.

Ressalta que as dez competências socioemocionais presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) representam um olhar contemporâneo da educação.

No entanto, acredita que não está sendo dada a ênfase necessária para o desenvolvimento dessas competências para os educadores. “Como eles podem promovê-las com seus estudantes se nunca tiveram a chance de olhar para si mesmos e sem oportunidade de autodesenvolvimento?”, questiona.

De acordo com a diretora, a formação inicial não dá conta dessa temática e as formações continuadas estão olhando basicamente para os estudantes, ou seja, trabalhando didáticas e metodologias para os alunos.

“É mais do que urgente ter oportunidades de desenvolvimento para os docentes com o foco exclusivamente neles, para que se tornem pessoas com maior capacidade de escuta, empatia, colaboração; para que saibam fluir em suas emoções diárias e para que procurem estabelecer boas conversas com seus estudantes, com base em respeito e ética”, conclui.

 

Reportagem publicada originalmente na Revista Mundo Escolar.

 

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