Menos rankings, mais pertencimento: outro discurso para a educação pública
O discurso educacional no Brasil hoje se baseia excessivamente na ideia de otimização, eficiência, metrificação e rankings. Esse debate se tornou ainda mais forte durante a pandemia, quando as atividades escolares se moveram para o ensino remoto e passamos a medir também a “perda” de aprendizagem. Na época em que comemoramos o centenário de Paulo Freire, é bom lembrar de uma de suas mais geniais metáforas: a da educação bancária, aquela em que o conhecimento é depositado nas cabeças dos estudantes como se fossem receptáculos passivos.
Medir é bom, mas estruturar um sistema em torno de medidas simplificatórias é perigoso: o que é fácil medir nem sempre é o mais importante. Além disso, sabemos que incentivos excessivos para o sucesso das escolas em certos rankings distorcem o sistema. Uma medida meramente diagnóstica, se sai em todos os jornais e TVs, vira uma métrica estruturante.
Mas há outro fator importante: o discurso da otimização e dos rankings esquece é que, no fim das contas, se o aluno não quiser aprender e não estiver minimamente interessado na escola, não há mágica econométrica, estatística ou tecnológica que resolva. E foi isso que vimos, de novo, na pandemia: mesmo quando o aluno podia aprender em casa, no seu tempo, no seu ritmo, a estratégia bancária de empurrar conteúdo goela abaixo —mesmo que por aplicativos ou outras parafernálias eletrônicas— funcionou menos ainda. O problema não era o lugar, o tempo, ou o ritmo: era a pedagogia, o interesse do aluno, o suporte da professora ou do professor.
E por que educadores “chatos” ficam repetindo que o aprendizado precisa de motivação e engajamento, de relevância, de conexão com a cultura do aluno? A razão não é só filosófica, mas empírica. Um dos resultados experimentais mais incontestáveis das ciências cognitivas é que, apesar do aprender ser um processo natural no cérebro humano, o aprendizado sistemático e diário da escola é dificílimo. E não só por necessitar de um grau enorme de concentração e disciplina, mas porque o conteúdo escolar muitas vezes contradiz as nossas concepções espontâneas da realidade —aprender implica em combinar o que sabíamos antes com coisas novas, mas muitas vezes também abandonar concepções que não servem mais— e esse é um processo lento e complexo.
Durante quase toda a existência humana, tínhamos ideias incompletas ou equivocadas sobre a Física, a Medicina e a Astronomia. Achávamos, não há muito tempo, que a Terra era o centro do sistema solar e que a melhor cura era sangrar os pacientes. Agora, esperamos que crianças de 10 anos aprendam o conhecimento acumulado de séculos em algumas horinhas de aula expositiva, sendo que a própria humanidade precisou de centenas de anos para entender essas ideias (e abandonar as antigas).
Educadores como Paulo Freire e Edith Ackermann perceberam que esse processo difícil de desconstrução e reconstrução de teorias e do conhecimento acontece melhor quando a criança quer participar dele. Isso não é o mesmo que dizer que a criança tem que, a todo momento, estar se divertindo e achar tudo fácil. Mas ela tem que aceitar, de forma sincera, o compromisso de começar uma caminhada com o professor e com os colegas de classe, e acreditar que vai chegar em um lugar de valor para ela. Esse compromisso faz com que, mesmo diante das dificuldades, ela aceite continuar na caminhada.
É por isso que a motivação, o pertencimento e a relevância são tão importantes na escola: as crianças precisam disso para estabelecer uma relação sólida e positiva. Nenhum aplicativo, centro de mídias, mensagem de texto ou mágica de economia do comportamento vai criar essa relação. O que a cria é um ambiente acolhedor, democrático, flexível e antenado ao mundo das estudantes.
E é por isso que o Brasil precisa de uma escola diferente, principalmente para crianças que vivem em situações vulneráveis. Para elas, continuar em uma escola que não engaja os seus interesses e realidades não faz sentido. É um passo para a evasão.
Para uma criança de classe média é muito mais fácil continuar na escola. Ela está lá para concluir o ensino médio, fazer faculdade e conseguir um emprego. É uma trajetória clara e inquestionável para as famílias. Mas hoje são esses estudantes que têm a oportunidade de encontrar uma escola mais interessante e antenada, com atividades extracurriculares, aulas de robótica, artes, idiomas, esportes. São essas crianças que vão encontrar mais oportunidades de trabalhar com projetos, em espaços maker e em laboratórios de ciências.
Já as crianças que não vêm desses extratos sociais encontram exatamente o contrário, e continuam em uma escola padronizada, empacotada, que dá o “básico.” E, tragicamente, são elas que de fato precisam de uma escola mais motivadora.
É urgente mudar o discurso da escola pública como o lugar que só oferece e mede o básico
Se tentamos otimizar a escola pública só para rankings nacionais e internacionais, essas métricas deixam de ser indicadores de qualidade global e passam a ser a razão de ser da escola—um fenômeno bem conhecido no mundo da pesquisa educacional. O resto — aquilo que faria o aluno criar conexões positivas com o aprendizado — fica para escanteio. Sim, é importante medir se a escola está fazendo o “básico”, mas não podemos confundir isso com achar que ela deve fazer só o básico—porque isso, hoje, significa evasão.
Percebemos com a pandemia que a escola é mais necessária do que nunca e que entregar o conteúdo escolar por aulas virtuais e remotas —o básico do básico—nunca irá substituir o estar na escola. A aluna não quer aprender “no seu tempo, no seu ritmo e no seu sofá” como dizem muitos gurus de empresas de tecnologia educacional. Ela quer aprender junto com outras pessoas, quer aprender sobre tópicos relevantes, quer perceber conexões entre a escola e a vida, quer se sentir reconhecida, valorizada e pertencente ao mundo da escola.
É urgente mudar o discurso da escola pública como o lugar que só oferece e mede o básico. Dar o básico e se obcecar com rankings não vai trazer nossas crianças e jovens de volta. Ou transformamos a escola pública em um lugar diferente, ou ela vai continuar a produzir evasão e exclusão em massa, e o Brasil continuará um país tragicamente desigual.
Saiba mais sobre o autor:
Paulo Blikstein
Professor da Universidade de Columbia e Diretor do Transformative Learning Technologies Lab.
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Conteúdo produzido em parceria com o Porvir, na coluna, o futuro se aprende