Neurodiversidade na escola: desafios e caminhos para uma educação com equidade
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A neurodiversidade é um termo que se refere às variações naturais que os seres humanos têm entre si quanto à organização neurológica. Nesse sentido, a médica Raquel Del Monde afirma que não somos diversos apenas nas características físicas, mas também no modo como o nosso sistema nervoso se estruturou. Os perfis cognitivos que se formam são diferentes uns dos outros e, por isso, sentimos, aprendemos e interagimos de maneira diferente, afirma.
O debate e a compreensão acerca de neurodiversidade provocaram, na perspectiva de Del Monde, uma naturalização das nossas diferenças neurológicas. Esse processo se afasta da concepção de patologia e se aproxima da linha de pensamento em que essas variações biológicas são naturais e devem ser valorizadas. “Tudo que conquistamos neste planeta não foi apesar das nossas diferenças, mas justamente por causa delas”, enfatiza a médica.
A neurodivergência se trata, então, da configuração neurológica que se diferencia de um padrão médio e típico humano, influenciando no neurodesenvolvimento. Entre as condições que se enquadram nesse aspecto, estão: Transtorno do Espectro Autista (TEA), dislexia, Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), deficiências intelectuais, superdotação, altas habilidades e alguns transtornos psiquiátricos, exemplifica Del Monde.
Entre as características das condições, Del Monde explica que o autismo se constituí de alterações na comunicação social — como o indivíduo interage com as pessoas —, de interesses e comportamentos restritos e repetitivos e de alterações do processamento sensorial. No TDAH, há uma dificuldade em coordenar as funções de comportamento, e, justamente pela dificuldade em inibir estímulos concorrentes, ocorrem flutuações da tensão, impulsividade, e inquietação psicomotora. Já a dislexia se caracteriza por um transtorno específico da aprendizagem, no que se refere à decodificação da linguagem escrita, isto é, a leitura.
Pessoas neurodivergentes enfrentam uma série de dificuldades no processo de formação escolar, seja no nível básico, seja no superior. Especialistas enfatizam que o desconhecimento acerca das condições divergentes, a falta de capacitação das e dos profissionais de educação e a ausência de estratégias adequadas de adaptação do ensino são fatores que permeiam o dia a dia de milhares de estudantes que convivem com a neurodivergência.
No Brasil, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, instituída em 2008, é uma das iniciativas governamentais que estabelecem diretrizes e normas quanto ao atendimento e desenvolvimento de um ensino inclusivo que abarque necessidades específicas dos estudantes com deficiência, com transtornos globais de desenvolvimento e com altas habilidades/superdotação.
A demanda de estudantes com condições de neurodesenvolvimento tem crescido ao longo dos anos. Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Segundo dados do Censo Escolar de 2023, apresentados pelo Ministério da Educação (MEC), houve um total de 1.771.430 de matrículas na educação especial básica, o que representa um aumento de 41,6% entre 2019 e 2023. Nesse recorte, havia 636.202 estudantes matriculados na educação básica que convivem com o autismo e outros 38.019 com altas habilidades ou superdotação.
No ensino superior, foram registrados 9718 estudantes matriculados com Transtorno do Espectro Autista e 4309 com altas habilidades/superdotação, conforme o Censo da Educação Superior de 2023. De 2013 a 2023, houve um crescimento de 219,4% no número de estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação matriculados no ensino superior.
Os dados reforçam que há uma crescente demanda de estudantes que convivem com condições de neurodivergência, o que implica a necessidade das instituições escolares e profissionais garantirem uma educação de qualidade e com equidade. Nesse aspecto, é reforçada a importância da capacitação de educadoras(es) e gestoras(es) educacionais no desenvolvimento e na aplicação de metodologias inclusivas e suporte escolar adequado.
Desafios para uma educação com equidade
No processo de ensino e aprendizagem, é fundamental que os profissionais da educação compreendam a saibam lidar com a neurodiversidade.
A formação inadequada de educadoras(es) no tratamento das diferentes formas de aprendizagem prejudica e conduz a ações que impactam negativamente a experiência e o aprendizado de pessoas neurodivergentes, reforça Vanessa Azevedo, psicopedagoga.
“O grande desafio na realidade educacional não é apenas aceitar estudantes neurodivergentes, mas garantir uma inclusão genuína. Isso envolve adaptar práticas pedagógicas, promover um ambiente acolhedor e contar com profissionais capacitados para atender às necessidades específicas desses alunos.”
Vanessa Azevedo - Psicopedagoga e coautora do livro Maternidade Atípica
Psicopedagoga Vanessa Azevedo. Crédito: Arquivo Pessoal.
A resistência de algumas famílias em buscar avaliação especializada, a carência de apoio terapêutico e a dificuldade em realizar práticas educativas estão entre os fatores que complicam a formação escolar de estudantes neurodivergentes, segundo a psicóloga clínica e escolar Camila da Silva Conceição, da Legacy School.
Lembrando que a equidade é quando as pessoas envolvidas em determinado processo e realidade têm as mesmas oportunidades. Um princípio que reconhece nossas diferenças, mas reforça que elas não podem causar desigualdades.
Estratégias educacionais
Vanessa Azevedo salienta sobre a importância do trabalho do psicopedagogo no ambiente escolar enquanto um terapeuta da aprendizagem. Esse profissional tem um papel essencial na inclusão, uma vez que compreende dificuldades e potencialidades dos estudantes e atua na promoção de ações eficazes para o desenvolvimento de cada um, defende Azevedo.
A função do psicopedagogo é auxiliar na identificação e intervenção em dificuldades de aprendizagem. A profissional menciona que ainda é raro ver esses profissionais dentro das escolas. O ideal, na perspectiva de Azevedo, é que eles sejam parte da equipe pedagógica, colaborando na construção de um ensino inclusivo e acessível a todos. “A presença do psicopedagogo não pode ser vista como um luxo, mas sim como uma necessidade essencial.”
Suporte familiar
A contribuição dos membros familiares se estabelece, segundo Azevedo, por meio do conhecimento, da aceitação, da parceria com a escola, da estimulação em casa, do reforço positivo — valorizar cada conquista, por menor que seja, contribui na autoestima e motivação.
Nesse sentido, a família tem um papel essencial no desenvolvimento e aprendizado dos filhos neurodivergentes. A participação ativa dos familiares no processo de acompanhamento da evolução da criança pode fazer toda a diferença na garantia de um ambiente acolhedor e estimulante, enfatiza a psicopedagoga.
Maternidade atípica
Em Goiânia (GO), a analista de conteúdo Nayana Moreira (33) conta que Arthur (10), seu filho, sempre foi uma criança diferente. Apesar de falar e andar no tempo correto, não socializava, tinha aversão a certos tipos de alimentos, não suportava barulho e repetia com frequência as palavras.
O diagnóstico de autismo nível de suporte 1 aconteceu em 2018, quando Arthur tinha três anos. Desde então, Nayana buscou conhecimento sobre a condição e descobriu o Núcleo de Arte e Inclusão do Autista (Naia), uma Organização Não Governamental (ONG) que possibilitou ao Arthur o atendimento psicoterápico. No processo de reavaliação neuropsicológica por conta do avanço da idade, Nayana disse que precisou fazer uma rifa para custear o procedimento e enfatiza a dificuldade do plano de saúde em relação aos atendimentos de saúde psicológica.
Nos estudos, devido à agitação de Arthur, ele não conseguia assistir às aulas. A pandemia de covid-19 agravou a situação, já que as aulas passaram a ser ministradas no formato online. Os anos de terapias e acompanhamento com profissionais da Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e Psicomotricidade contribuíram para a qualidade de vida do jovem goiano.
“Com o passar do tempo, as terapias começaram a fazer efeito e hoje ele lida muito bem com as atividades e os colegas, faz amizades e consegue focar na aula. Ele tinha uma rigidez cognitiva forte, isso foi se dissipando com o auxílio das terapeutas e da escola. Enquanto família, ficamos muito inseguros por muito tempo. Mas sempre buscamos seguir médicos, terapeutas, pedagogos que falam sobre o assunto.”
Nayana Moreira - mãe do Arthur
Nayana Moreira e Arthur. Crédito: Arquivo Pessoal.
Na opinião de Nayana, a maioria das escolas não está preparada para receber estudantes neurodivergentes. Segundo a goiana, uma instituição escolar de renome da capital goiana chegou a recursar o Arthur por ser autista. Apesar de saber que isso é ilegal, ela não quis prosseguir com a denúncia. Atualmente, a experiência escolar é positiva. Houve um acolhimento e o trabalho qualificado da coordenadora pedagógica, da professora titular e da professora de apoio que contribuíram para o desenvolvimento de seu filho.
Em Campinas (SP), Raquel Del Monte, além de médica, é ativista e mãe do Bruno, que é autista. A descoberta do diagnóstico dele ocorreu aos oito anos. Os primeiros sinais que chamaram a atenção foram as dificuldades de interação, em permanecer no ambiente escolar e em executar determinadas atividades. Na época, a falta do acesso facilitado de informações via internet complicou a agilidade na identificação do caso.
Raquel conta que teve uma boa experiência com a escola onde Bruno estudou por muitos anos e concluiu o ensino médio. A instituição acolheu as novidades que a profissional levava de livros e congressos para auxiliar na experiência educacional do filho.
Com 26 anos, Bruno cursou Ciências da Computação na Universidade de São Paulo (USP), formação superior de seu desejo. Del Monde destaca que teve sorte e muitos privilégios em sua experiência.
“Tenho trabalhado todos esses anos para que outras crianças não precisem contar com a sorte, para que a gente lute por um sistema educacional como um todo que abandone esse engessamento, essa ideia de que todo mundo aprende igual, de que todos precisam entrar numa norma, e que abrace essa ideia de diversidade, de ambientes diversificados e de flexibilidade.”
Raquel Del Monde - Médica especializada em transtornos de neurodesenvolvimento
Raquel Del Monde e seu filho Bruno. Crédito: Arquivo Pessoal.
Vanessa Azevedo é coautora do livro Maternidade Atípica. A produção dessa obra é resultado, além do processo de estudo e pesquisa sobre a temática, de sua experiência como mãe do Bernardo (5). A profissional conta que, desde o início, percebeu que seu filho tinha um jeito único de ver o mundo, e foi esse “jeitinho” dele que a fez mergulhar mais a fundo no universo da neurodiversidade.
Vanessa evidencia que a falta de compreensão sobre as necessidades de seu filho, a dificuldade em encontrar profissionais preparados e a luta por uma educação que realmente respeitasse seu ritmo fizeram e fazem parte de uma batalha constante.
“Bernardo me lembra todos os dias que a neurodiversidade não é um limite, mas uma nova forma de enxergar o mundo. E se eu puder deixar um legado, será o de ajudar a construir espaços onde crianças como ele sejam acolhidas, respeitadas e possam brilhar exatamente do jeitinho delas.”
Vanessa Azevedo - Psicopedagoga e coautora do livro Maternidade Atípica
Vanessa Azevedo e seu filho Bernardo. Crédito: Arquivo Pessoal.
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Diagnóstico e tratamento das condições de neurodivergência
O comportamento é o meio pelo qual a maioria dos casos de neurodivergência recebe o diagnóstico. A manifestação das condições de neurodivergência, como o autismo, a dislexia e o TDAH, começa nas fases iniciais do desenvolvimento, afirma Raquel Del Monde.
Especializada em transtornos de neurodesenvolvimento, Raquel Del Monde se formou em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP). Crédito: Arquivo Pessoal.
Ao longo do tempo, a ciência tem estabelecido critérios cada vez mais objetivos, apesar de que na observação do comportamento há um processo subjetivo empregado, o que depende da experiência, do olhar e do conhecimento do profissional observador. Para a médica, a observação tem de ser extremamente cuidadosa e levar em conta todo o histórico da pessoa, seus comportamentos em diversos contextos e ao longo do tempo.
Quanto ao tratamento, no caso do TDAH, há evidências robustas de que o tratamento farmacológico tem uma considerável contribuição e se alia a algumas intervenções ambientais. No autismo, há iniciativas específicas focadas em comunicação social, e, na dislexia, o suporte educacional e pedagógico é a principal ferramenta de acompanhamento.
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Psicologia e influência digital sob a perspectiva de um neurodivergente
No interior de São Paulo, em Botucatu, Lucas Pontes (27) cresceu com comportamentos atípicos. Ele conta que foi um bebê quieto que não reagia muito aos estímulos sociais. “Andava na ponta dos pés, tinha muita dificuldade para brincar com as outras crianças, seletividade alimentar e inúmeras crises, chorava desesperadamente e perdia o controle, sem grandes motivos aparentes na época”, afirma.
Lucas Pontes na fase da infância. Crédito: Arquivo Pessoal
Na fase da adolescência, o paulista começou a ter crises mais constantes, especialmente quando estava em ambientes com muitos estímulos. Apresentava pouco contato social, comportamento rígido e hiperfoco em atividades como desenho e música. Depois passar por diferentes especialistas, o diagnóstico de autismo veio após os 19 anos. A resposta foi um alívio para o jovem, que sempre buscou, junto de sua família, respostas para perguntas que se fazia desde sua infância.
Desde então, com acompanhamento adequado, Lucas passou a desenvolver habilidades necessárias, principalmente no que tange à comunicação e socialização, bem como a compreender questões sensoriais. Aos 24 anos, recebeu outro diagnóstico, o de altas habilidades e superdotação (AH/SD).
Sobre sua experiência escolar, Lucas destaca que a escola sempre foi um ambiente extremamente aversivo e desgastante. Infelizmente, o bullying marcou a realidade de Lucas, que também não contou com um apoio adequado dos profissionais que trabalhavam na instituição.
Ao longo de sua formação, teve facilidade em aprender os conteúdos ministrados e, por outro lado, uma maior dificuldade nas atividades que envolviam trabalhos em grupo e ambientes barulhentos, com muitas luzes e muitas pessoas.
A música é uma arte pela qual Lucas Pontes sempre se interessou. Crédito: Arquivo Pessoal
Apesar de querer seguir a carreira de músico, Lucas optou por ingressar no curso superior de Psicologia por reconhecer as dificuldades que teria enquanto autista no trabalho com a música. A escolha por esse curso superior se deu pelo interesse em compreender melhor o comportamento humano, que, em sua perspectiva, sempre pareceu estranho, assim como para ajudar outras pessoas com histórias semelhantes à sua.
Os estágios em atividades diretamente relacionadas com outras pessoas autistas, no contexto escolar, desenvolveram em Lucas um fascínio maior em relação ao espectro autista, decidindo seguir no atendimento clínico de jovens e adultos neurodivergentes.
Atualmente, Lucas também é influenciador digital e soma mais de 120 mil seguidores no Instagram (@lucas.atipico). Ele acredita que a representatividade seja uma das armas essenciais contra o preconceito.
“A produção de conteúdo sobre autismo, feita por pessoas autistas, que teve um aumento considerável na última década, trouxe uma nova perspectiva sobre o espectro e tem quebrado muitos mitos sobre o autismo, além de proporcionar identificação e acolhimento”
Lucas Pontes - Psicólogo e influenciador digital
Entretanto, Lucas frisa que entre os problemas enfrentados atualmente na internet está a falta de pluralidade na representatividade, especialmente quanto a autistas que demandam maior suporte e/ou têm interseccionalidades. Outro ponto é a banalização crescente da condição por meio da divulgação de informações, muitas vezes, incorretas e genéricas. A carência de conteúdos mais críticos — que vão além de aspectos e características do autismo, explorando as opressões sofridas por essas pessoas e seus familiares — é uma realidade no meio digital.
A respeito das estratégias educacionais que podem ser adotadas no atendimento a pessoas neurodivergentes na educação, Lucas considera a necessidade de uma melhor capacitação dos profissionais da educação, que devem ter acesso a instrumentos que ofereçam suporte, como a Comunicação Aumentativa e Alternativa, bem como trabalhar com profissionais de outras áreas.
“Superar as barreiras atitudinais, percebendo o capacitismo e os seus impactos na atuação dos profissionais, assim como a conscientização dos colegas de sala, a não naturalização do bullying e da exclusão social dos alunos autistas, são outros pontos fundamentais.”
Lucas Pontes - Psicólogo e influenciador digital
Na perspectiva do psicólogo, a presença de autistas nas áreas de saúde, como Medicina, Psicologia e Fonoaudiologia, é essencial para uma mudança no modo como enxergamos o autismo e acolhemos pessoas autistas, em prol de se construir uma “ciência acessível e anticapacitista”.
Por Lucas Afonso, jornalista.
*Conteúdo sob responsabilidade exclusiva do parceiro.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Bett Brasil.
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