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20 dez 2021

Como a escola lida com o trauma e constrói perspectivas de futuro com os jovens

Autor convidado: Gustavo Estanislau
Como a escola lida com o trauma e constrói perspectivas de futuro com os jovens


 

Vivemos em um mundo em acelerada transformação. Nossa relação com a tecnologia vem catalisando mudanças significativas em campos diversos, como o mercado de trabalho, relações sociais, lazer, sexualidade, estrutura familiar, saúde, entre outros. A velocidade é tamanha que a geração que se desenvolveu em um panorama mais “estático” frequentemente apresenta dificuldades em se posicionar. Um exemplo bastante comum se refere à expectativa que alguns pais criam sobre seus filhos, pautados em uma realidade que muitas vezes se encontra defasada, expressa em comentários como “na sua idade eu já estava trabalhando”, ou “sem faculdade você não vai ter um futuro decente”. A questão aqui não é o que seria considerado bom ou ruim, mas sim, a complexidade de lidarmos com o ritmo dos dias de hoje.

Mudanças, independentemente de sua natureza, são desafios que demandam adaptação, e adaptar-se, por si, é um desafio que depende de recursos internos, coletivos e ambientais. Como se não fosse suficiente, temos enfrentado situações imprevistas, como a pandemia que se instalou no ano passado e que gerou desdobramentos radicais em nossas vidas. Como sociedade, não tínhamos recursos – nem mesmo parâmetros científicos mínimos – que nos orientassem, e até então convivemos com um cenário caracterizado por incertezas, insegurança e, para muitos, desesperança e medo. Embora uma parte das pessoas tenha conseguido se adaptar, pesquisas populacionais vêm demonstrando que problemas sociais e psicológicos foram marcantes ao longo deste período, incluindo-se aqui crianças e adolescentes que experimentaram experiências traumáticas.

 

Mas o que é um trauma psicológico?
A palavra trauma deriva do grego e significa “ferida”. Vivências diretas ou indiretas (quando somos testemunhas ou ouvimos uma história) de dano real ou risco iminente à integridade física, sexual, moral (como em casos de assédio e bullying), assim como notícias impactantes e inesperadas (por exemplo, a morte de alguém, a demissão de um familiar ou o fim de um relacionamento amoroso). Essas experiências podem ser determinadas como traumáticas quando geram memórias que causam sofrimento significativo, muitas vezes associadas a consequências físicas, psicológicas e/ou sociais negativas.

Quando passamos por uma experiência complicada, sofremos impactos distintos uns dos outros. Isto se deve, em parte, a fatores cognitivos (por exemplo, de acordo com a capacidade de dar significados ao que aconteceu), emocionais (por exemplo, maior ou menor reatividade emocional ao que aconteceu) e comportamentais (por exemplo, a busca por isolamento após o evento). É importante notar que tais aspectos podem sofrer variações ao longo do tempo, ocasionando maior suscetibilidade à resiliência ou, pelo contrário, ao surgimento de um trauma. Por exemplo, um jovem com mais autoconhecimento, com melhor capacidade de expressar emoções, com uma boa rede de fatores protetores (ter amigos, praticar atividades físicas) ou que tenha aprendido a utilizar estratégias de autorregulação emocional (como técnicas de relaxamento ou meditação), tem em mãos ferramentas poderosas para lidar com situações potencialmente traumáticas.

Além disso, características específicas do ocorrido influenciam o risco de se tornarem traumáticas. Neste sentido, acontecimentos provocados por pessoas (principalmente conhecidos) são mais prováveis de gerar desdobramentos negativos do que um desastre natural. Por outro lado, eventos repetidos têm maior risco do que os pontuais. Entre as diversas possibilidades de estressores graves, estudos salientam que o abuso na infância é particularmente nocivo.

Em casos nos quais a capacidade de elaborar o que se passou é ultrapassada, os efeitos do trauma tendem a se manter, acarretando problemas no funcionamento geral (como queda no rendimento escolar e social) e podem desencadear o surgimento de transtornos mentais. Reações agudas ao estresse, o transtorno de estresse pós-traumático, quadros de depressão ou ansiedade e, ao longo do tempo, alterações persistentes de personalidade, são algumas das repercussões conhecidas.

No contexto da infância e da adolescência, o ambiente escolar vem sendo considerado um núcleo com potencial enorme de desenvolvimento de movimentos de adaptação, sejam eles referentes às novidades do mundo moderno, ou relativos aos percalços potencialmente traumáticos que nos afligem, como a pandemia da Covid-19.

 

Estratégias de atuação para a escola
Sob esta perspectiva, um advento que vem gerando esperança é a inclusão de programas de estímulo às competências socioemocionais, contemplado, no Brasil, pelas diretrizes da BNCC (Base Nacional Comum Curricular).

Em uma proposta de desenvolvimento integral do indivíduo, a BNCC define o termo competência como “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”.

Os programas de disseminação de conhecimentos em saúde mental também podem ser uma estratégia de grande valor. O conhecimento sobre fatores de risco e proteção pode orientar a formulação de ações direcionadas, como campanhas de estímulo a atividades físicas, a qualidade do sono e o investimento em detecção de casos que demandem encaminhamento para equipes especializadas, antes que memórias traumáticas se estabeleçam ou que sintomas de transtornos psiquiátricos se agravem.

Mas, para que iniciativas como essas alcancem seus objetivos, muito trabalho ainda é necessário. A transição de um paradigma voltado ao conteúdo acadêmico para outro, que se dedica à formação do aluno como um sujeito, é o objetivo inicial. Como sociedade, outro paradigma que deve ser endereçado se refere à relação que temos com a saúde mental. Posturas estigmatizantes devem ser mitigadas por meio de procedimentos embasados em evidências científicas e os princípios da promoção de saúde e da prevenção de transtornos precisam ser realmente acreditados e incorporados pelas pessoas. Crises, por mais difíceis que sejam, geram oportunidades.

 

Novas perspectivas de futuro
Antes de encerrar, gostaria de propor a você, leitor, uma reflexão: imagine-se como um adolescente no ano de 2021 assistindo a um noticiário. O que você vai ouvir sobre o mercado de trabalho? E sobre o meio ambiente? E sobre segurança pública? E sobre o que é ser bem sucedido nos dias de hoje? Qual seria a sua percepção do futuro?

Recebo, frequentemente, muitas reclamações de adultos sobre a postura dos mais jovens que só querem “viver o aqui e agora”. Sempre que passo por isso, faço essa reflexão. Como eu me sentiria sendo um jovem da atualidade.

Em um mundo no qual exaltamos o quanto trabalhamos demais, o quanto os recursos ambientais estão cada vez mais escassos, o quanto “tudo está mais perigoso” e que, em geral, o quanto “a vida está cada vez mais difícil”, me parece lógico que jovens optem, com frequência, pela negação do futuro. Principalmente em um momento em que se está no auge do vigor físico e frente a tantas possibilidades.

 

Tais programas, quando bem sucedidos, ampliam o repertório socioemocional de alunos (e, em alguns casos, de educadores), gerando fatores de proteção que abrangem aspectos variados como o autoconhecimento, a capacidade de autorregulação, tomadas de decisão e habilidades sociais, entre outros. Os benefícios relatados na literatura são promissores, cursando com ganhos individuais e coletivos, específicos (como a melhora no desempenho acadêmico) e mais amplos (como a melhora no bem-estar), com vantagens a curto, médio e longo prazo.

Acredito que, como adultos, precisamos refletir sobre a forma como temos vivido e como descrevemos o que estamos vivendo. Qual é a motivação que se tem em crescer em um ambiente tão duro? Não precisaríamos fugir tanto de uma realidade que fosse um pouco mais atraente.

Portanto, neste final de ano, proponho que possamos pensar a respeito de buscarmos formas de, como adultos, demonstrar o quanto crescer pode ser um processo um pouco mais positivo. Precisamos nos cuidar um pouco melhor. Sei que isso pode ser uma tarefa complicada, pois, afinal de contas, temos nos condicionado a fazer o contrário. Mas acredito que possamos tentar mencionar, com um pouco mais de empenho, possibilidades e não só as dificuldades, avanços e outras boas notícias (sim, elas existem), e percepções positivas sobre as coisas (por exemplo, é muito mais comum que falemos de aspectos negativos do trabalho, do que algo positivo que aconteceu).

O que se sugere não é estimular a condescendência e a passividade frente às adversidades que temos enfrentado, mas sim, a uma reflexão sobre formas de auxiliar os jovens a se sentirem menos assustados com o processo de se tornarem adultos.

 

Saiba mais sobre o autor:

Gustavo Estanislau

Psiquiatria da Infância e Adolescência, autor do Livro “Saúde Mental na escola: o que os educadores devem saber”, da Editora Artmed, e coordenador científico do Instituto Ame Sua Mente, que tem o objetivo de promover uma nova cultura de saúde mental no Brasil.

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Conteúdo produzido em parceria com o Porvir, na coluna, o futuro se aprende

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