A criança e a leitura
Em 1934, Cecília Meireles organizou a primeira biblioteca pública infantil brasileira, localizada no Pavilhão Mourisco, em Botafogo. O objetivo foi asseverar a importância das bibliotecas para a formação do leitor, sobretudo, para subsidiar o prazer da leitura. Ela ainda fez considerações pertinentes à importância da escolha criteriosa dos livros, a partir da preferência das crianças, segundo sexo e idade; sugere a pais e professores a necessidade da organização de bibliotecas infantis “visto não existirem mais amas nem avós que se interessem pela doce profissão de contar histórias”.
Isso tudo está escrito num texto de sua autoria, publicado em 1979. Lá se foram quatro décadas e as amas de leite, avós e mães, foram substituídas pelas babás eletrônicas, cuidadoras cansadas, atendentes e auxiliares de creches sobrecarregadas e educadoras despreparadas, ou seja, dificuldades da criança se relacionar com o simbólico, com o imaginário, com a palavra.
É fácil escrever um texto ou discursar sobre a falta de leitores e a falta de amor pela leitura nas novas gerações. Difícil é sair do senso comum para pensar outras possibilidades dessa triste constatação, e nos permitir outras saídas e estradas ao universo da literatura infantil.
Como podemos falar, pensar ou planejar possibilidades de construção do leitor, sem os livros? Se na alimentação precisamos da cozinha, na literatura precisamos da biblioteca. Nelas podemos armazenar todos os ingredientes necessários ao cozimento de deliciosos pratos. O leitor infantil precisa dessa cozinha, cuja dispensa tem que estar abastecida. Se as bibliotecas sumiram e estão sumindo cada dia mais, como iremos construir os novos leitores? Se a solução for a compra de livros online, há um equívoco, porque a compra de alimentos online não melhorou a alimentação das pessoas, então por que a compra online melhoraria a formação do leitor infantil?
O impacto do livro no desenvolvimento intelectual, cognitivo e na personalidade de bebês e crianças
As crianças muito pequenas precisam de uma literatura que forme valores. Isso é possível com a leitura de fábulas, por exemplo. As fábulas são moralizantes, o bem sempre vence o mal, o bom está na frente do mau e assim por diante. Quer dizer, a criança precisa inicialmente de uma estruturação do pensamento em direção ao bom, ao belo e ao coletivo e isso o livro contribui demais.
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Para onde foi/vai a literatura infantil?
Essa é a questão mais séria neste momento, a literatura infantil perdeu sua época. Os livros de hoje não reconhecem a criança de hoje. Os livros de hoje ainda trazem as temáticas da literatura do início do século passado. As crianças de hoje estão carentes de livros que dialoguem com elas e este dialogo só pode acontecer com as temáticas deste tempo. A criança de hoje quer ser protagonista, quer ser o ator de sua história, quer se ver e se reconhecer em suas características e, nesse caso, o livro infantil não dá esta possibilidade. Ainda fazemos livros infantil com bichinhos, passarinhos e outros elementos que não teriam problemas algum se fossem múltiplos, só que os livros na maioria das vezes só trazem estas temáticas.
O que as crianças de hoje têm de simbólico?
A realidade virtual, o mundo em três dimensões, a realidade aumentada, a virtualidade, o mundo por detrás dos superpoderes e dos heróis. A criança deste tempo é mágica, mística, multifacetada. E isso, gostemos ou não, é a criança deste tempo.
Quando estreia no cinema um filme com estas características as salas ficam lotadas e o que é mais interessante, as crianças variam de 3 a 90 anos. Há crianças de todas as idades interessadas em mundos mágicos, seres tridimensionais, lugares inabitados e universos completamente desconhecidos. Mas os livros insistem em cenários imóveis, personagens sem função e histórias sem graça.
Por que o livro está com dificuldade de chegar até a criança?
Sempre atribuímos isso a falta de dinheiro, mas com a internet esta justificativa caiu por terra. Há muitas crianças com acesso à internet que não acessam o livro, ou seja, tem o recurso, mas não querem, não gostam, não tem hábito. Por outro lado, o livro também chegou, em poucas quantidades, mas chegou às escolas. Dificilmente você vai encontrar hoje uma escola sem livros infantis, mas apesar de eles já existirem o hábito da leitura ainda não foi garantido e isso acontece porque ler é um prazer solitário que se aprende, por exemplo, por observação e por prática, mas a criança, muitas veze, não vê o pai lendo, não vê a mãe lendo e não vê a professora e o professor lendo, quer dizer, ela terá que fazer algo que ninguém faz. Como se convencer de que isso é bom se ninguém faz?
O livro digital e o livro físico
O livro digital também se esbarra na falta de hábito. Não há nenhuma diferença, apenas o suporte que difere. O livro físico tem um suporte que é o papel. O digital tem o outro suporte que é a tela. Mas o acesso e a paixão para ambos se dá da mesma forma: hábito.
Estamos, nós, sociedade, não ouvindo, não vendo, não compreendendo a criança deste tempo. A criança deste tempo está sem voz, está sem representação nas instituições que tomam as decisões por ela. Ou seja, quem decide pela criança não está ouvindo a criança. Por isso, esse descompasso.
De que forma o professor pode incentivar o gosto das crianças por obras literárias?
Lendo. Se o professor brasileiro ler, ler de tudo, ler com as crianças, ler na frente das crianças e ler para as crianças já é um bom começo. Da mesma forma o pai e a mãe deveriam se comportar. Ler para a criança, ler com a criança e conversar com a criança sobre leituras. Isso é o que forma o hábito.
As competências e as habilidades que precisam ser trabalhadas pelo professor para que seus alunos se formem leitores literários
Começar a ler livros pela imagem, depois evoluir para livros com textos breves e com poucas personagens e por fim já dar início a leitura de textos mais elaborados, com mais cenários, mais personagens e mais tramas. Esse crescimento é respeitoso com o leitor em construção, pois ele precisa ter cognição e memória suficientes para manter o fio narrativo do livro e quando isso não acontece ele abandona a leitura.
O papel da escola em relação ao estímulo à literatura infantil
A escola deve providenciar um acervo aberto. Aquele que a criança entra e viaja até escolher o que deseja. Quando o acervo é fechado, aquele típico que tem uma moça na porta que pergunta qual o livro a gente quer ou já coloca sobre a mesa o livro escolhido por ela, a criança tem restrição demais para poder desenvolver a paixão pelo livro. O livro precisa do namoro da criança. Ele precisa despertar na criança o encantamento e a vontade de tocá-lo.
Sobre o autor:
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Geraldo Peçanha de Almeida
Pedagogo, psicanalista, mestre em Teoria Literária e doutor em Crítica Literária
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Bett Brasil.
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