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A definição do crime de bullying/cyberbullying e os desafios para escolas: ampliando a tutela de crianças e adolescentes em situações de violência escolar sob a Lei nº 14.811/24

Márcia Bernardes e Christiany Pegorari
A definição do crime de bullying/cyberbullying e os desafios para escolas: ampliando a tutela de crianças e adolescentes em situações de violência escolar sob a Lei nº 14.811/24
Artigo visa analisar os impactos da nova legislação na prevenção e combate à violência no ambiente escolar e, neste contexto, avaliar a efetividade do delito de intimidação sistemática em face da redação legislativa

No dia 12 de janeiro de 2024, foi sancionada a Lei nº 14.811/24, que modificou o Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40), a lei de crimes hediondos (Lei nº. 8.072/90) e o estatuto da criança e do adolescente (Lei nº 8.069/90).

Além das alterações legislativas, a nova regulamentação também institui medidas de proteção a crianças e adolescentes contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares e prevê a política nacional de prevenção e combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes.

Nitidamente, o legislador deu ênfase à ampliação da tutela infanto-juvenil, bem como criou o tão esperado tipo penal: o crime de bullying e cyberbullying. O presente artigo tem por objetivo realizar uma breve análise sobre os impactos da nova legislação na prevenção e combate à violência no ambiente escolar e, nesse contexto, avaliar a efetividade do delito de intimidação sistemática em face da redação legislativa.

Dos impactos da Lei nº 14.811/24 no ambiente escolar

A Lei nº 14.811 pode acarretar transformações para o cenário educacional brasileiro, estabelecendo e reforçando responsabilidades sobre as instituições de ensino e profissionais da educação, exigindo das escolas uma atuação mais ativa na prevenção da violência no ambiente escolar.

Isto inclui o treinamento e capacitação contínua de professores e funcionários, que devem ser capazes de identificar sinais de violência e intervir eficazmente, para além das medidas de conscientização e prevenção.

Nesse sentido, a Lei nº 13.185/15 (que instituiu o programa de combate à intimidação sistemática) estabelece, por exemplo, no artigo 4º: Constituem objetivos do Programa referido no caput do art. 1º: II - capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema, e deve ser utilizada de modo integrado à novel legislação.

O próprio artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 14.811 menciona o que se considera violência contra crianças e adolescentes, com base nas seguintes legislações que a complementam:

a) 13.185/15 – legislação que institui o programa de combate à intimidação sistemática e apresenta definições sobre bullying e cyberbullying (artigo 2º);

b) 13.431/17 – que regulamenta, dentre outros aspectos, a escuta especializada e o depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e define as espécies de violência no artigo 4º (física, psicológica, sexual, institucional, patrimonial);

c) 14.344/22 – conhecida como Lei Henry Borel aborda a violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, bem como, define o significado de violência no artigo 2º, além de estabelecer medidas protetivas a partir do art. 15.

Vale lembrar, também, que a lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), já havia sido alterada em 2018, no artigo 12, para prever, como obrigações para as instituições de ensino:

IX - promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas; (Incluído pela Lei nº 13.663, de 2018)

X - estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas. (Incluído pela Lei nº 13.663, de 2018).

As escolas, portanto, devem ser encorajadas a realizar workshops, simulações e até mesmo convidar especialistas em saúde mental para preparar melhor seu corpo docente. Além disso, é recomendável a revisão e atualização dos códigos de conduta escolar, enfatizando políticas antiviolência e a criação de comitês de segurança que incluam professores, pais e alunos.

A lei também destaca a importância de um ambiente escolar seguro e inclusivo. Campanhas de conscientização sobre o impacto do bullying, a criação de espaços de diálogo e programas de mentoria são algumas das iniciativas sugeridas para fomentar um clima escolar de respeito e suporte mútuo.

A utilização de ferramentas digitais para monitorar o uso de tecnologia na escola e a educação dos alunos sobre segurança online se tornaram essenciais para combater o cyberbullying.

Ademais, a nova legislação incluiu no ECA as seguintes obrigações legais:

Art. 59-A. As instituições sociais públicas ou privadas que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes e que recebam recursos públicos deverão exigir e manter certidões de antecedentes criminais de todos os seus colaboradores, as quais deverão ser atualizadas a cada 6 (seis) meses.  

Parágrafo único. Os estabelecimentos educacionais e similares, públicos ou privados, que desenvolvem atividades com crianças e adolescentes, independentemente de recebimento de recursos públicos, deverão manter fichas cadastrais e certidões de antecedentes criminais atualizadas de todos os seus colaboradores.

Estas medidas visam não só a prevenção, mas também estabelecem protocolos claros de ação em casos de violência ou abuso, garantindo procedimentos adequados de denúncia e acompanhamento e corrobora as disposições do ECA, que abordam a responsabilidade das instituições escolares sobre situações de violência (artigos 56 e 245).

Essa nova legislação não apenas exige ações imediatas, mas também impulsiona uma mudança cultural nas escolas. A implementação de medidas práticas para prevenir e reagir a casos de violência, com a participação ativa dos estudantes em todo o processo de construção e monitoramento.

A colaboração com autoridades locais e a integração em redes de proteção à infância e adolescência são igualmente importantes para uma abordagem holística e eficaz. As escolas, agora, enfrentam o desafio de adaptar-se a esses novos requisitos legais, o que passa inevitavelmente pela educação continuada dos educadores.

Aspectos criminais da Lei 14.811/24

A Lei nº 14.811/24 inseriu na lei de crimes hediondos: o artigo 122, caput e parágrafo 4º; o sequestro e cárcere privado contra menores de 18 anos (artigo 148, parágrafo 1º, inciso IV do Código Penal); o tráfico de pessoas somente quando a vítima for criança ou adolescente (artigo 149-A, parágrafo 1, inciso II do Código Penal); os crimes dos artigos 240, parágrafo 1º e 241-B do ECA (importante enfatizar que o legislador não considerou, portanto, todas as situações de pornografia infanto-juvenil como hediondas).

cyberbullying

No Código Penal, a Lei nº 14.811/24 alterou os artigos: 121, parágrafo 2º-B (o homicídio contra pessoa menor de 14 anos já havia sido inserido pela Lei Henry Borel e passa a ter mais uma causa de aumento (2/3), se o crime for praticado em instituição de educação básica pública ou privada); artigo 122 (crime de induzimento, instigação e auxílio ao suicídio e à automutilação) – inserindo o parágrafo 5º (aplica-se a pena em dobro se o autor é líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual ou por estes é responsável).

Importante destacar que o referido delito já havia sido alterado pela Lei nº 13.968/19, que inseriu a automutilação e outras causas de aumento, dentre as quais, o aumento de pena quando a vítima é menor (parágrafo 3º, inciso II) e se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, rede social ou transmitida em tempo real, ou seja, já havia uma preocupação do legislador com a violência ocorrida no ambiente digital, notadamente, em relação aos jogos ou desafios online.

A automutilação também gerou a edição da Lei nº 13.819/2019, que institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio e também prevê a obrigação de notificação compulsória ao Conselho Tutelar, por parte de estabelecimentos educacionais, das situações confirmadas ou suspeitas, de violência autoprovocada (artigo 6º).

Do crime de Bullying e Cyberbulying

Talvez a alteração mais esperada e, igualmente, mais discutida trazida pela legislação de 2024, foi a inserção do artigo 146-A ao Código Penal: a tipificação do crime de bullying e cyberbullying, dentro do capítulo VI (dos crimes contra liberdade individual), seção I (dos crimes contra a liberdade pessoal):

Intimidação sistemática (bullying)

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:  

Pena - multa, se a conduta não constituir crime mais grave.  

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)  

Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real: 

Pena - reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.   (Incluído pela Lei nº 14.811, de 2024)

A primeira observação diz respeito à redação legislativa extremamente abrangente (e sua violação o princípio da legalidade que preconiza que o tipo penal deve ser claro, objetivo etc.) e redundante em alguns pontos (intimidar sistematicamente por meio de atos de intimidação, por exemplo), reflexo da dificuldade em se definir um comportamento com base em termos estrangeiros, já que o termo bullying vem do inglês bully e serve para definir todo tipo de comportamento agressivo, intencional e repetido inerente às relações interpessoais[1].

Assim, ofender, humilhar, discriminar, excluir, isolar, ignorar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar, dominar, bater, chutar, empurrar, ferir, dentre outras situações, servem para caracterizar esse termo que não possui tradução literal para a língua portuguesa e pode abranger diferentes tipos de comportamentos, diversas espécies de violência e de gradações diferentes.

Diante da problemática redação legislativa, certamente iremos nos deparar com uma de duas situações: a) o esvaziamento da tutela penal: o tipo penal é subsidiário (somente aplicável quando não configurar situação mais grave) e apenado com multa (isoladamente) e sua abrangência ocasionará interpretações diferentes, inclusive por sua inaplicabilidade; b) impulsionado pelo direito penal máximo e, especialmente, pela necessidade de uma rápida resposta à um problemática da violência no contexto escolar, ser amplamente aplicado para qualquer situação.

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De todo modo, o tipo penal exige a reiteração de atos (intimidação sistemática), ou seja, um único ato não irá configurar o delito e não demanda que os sujeitos ativo e passivo sejam menores de 18 anos, bem como não faz referência à educação básica etc., assim nada impede, por exemplo, que situações como essas ocorram, inclusive, no ambiente universitário entre estudantes ou de estudantes para com professores e vice-versa. O ambiente universitário é um ambiente plural (ainda bem e deve ser) e, como tal, sujeito a tensões e a situações como essas.

Se, no entanto, o autor for criança ou adolescente deverão ser aplicadas as medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que deverá ser considerado como ato infracional (artigo 103 do ECA).

A intimidação sistemática virtual (cyberbullying) prevê uma pena maior (reclusão de 2 a 4 anos e multa), embora também seja um delito de natureza subsidiária. O termo cyberbullying é, assim como o bullying, bastante amplo e abrangente, abarcando uma série de comportamentos e pode ser definido como o dano intencional e repetido praticado com o uso dos computadores, telefones celulares e outros dispositivos eletrônicos.

Assim, o fenômeno do cyberbullying abarca todo e qualquer tipo de agressões, assédios, coações, chantagens, manipulações, perseguições, xingamentos, humilhações, constrangimentos e condutas similares realizadas com o uso e através das tecnologias de informação e comunicação[2].

Aliás, vale reiterar que a Lei nº 13.185/15 também tentou, sem muito sucesso (dada a abrangência do termo, conforme já comentado), definir as situações de intimidação sistemática, mas não se trata de disposições incriminadoras como a trazida pelo artigo 146-A do CP.

Tanto o bullying quanto o cyberbullying são crimes dolosos, sem previsão de modalidade culposa. O tipo penal permite que, tanto no polo ativo, quanto no polo passivo, existam mais de uma pessoa (intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas) resta saber, no entanto, quantos agentes serão necessários para a configuração do grupo.

Por fim, as questões que envolvem a tutela de crianças e adolescentes, bem como situações de violência no ambiente escolar, evidentemente, merecem atenção.

Nesse sentido, caminhou bem o legislador quando reforçou aspectos relacionados às políticas de proteção e prevenção à violência contra crianças e adolescentes, gerando uma preocupação, especialmente no contexto das instituições de ensino, com o desenvolvimento de competências para lidar com questões de violência e saúde mental dos estudantes.

Contudo, na parte criminal, o legislador gerou situações problemáticas e duvidosas, dentre as quais a criação de um tipo penal desnecessário e mal redigido, que deixa nas mãos do julgador a efetividade ou não do novo crime. Resta-nos aguardar e acompanhar a jurisprudência para saber como e se o tipo penal de bullying/cyberbullying será aplicado e, principalmente, se servirá à coibição desses comportamentos.

Sobre as autoras:


[1] FIORILLO, Celso Antonio P. CONTE, Christiany Pegorari. Crimes no meio ambiente digital e a sociedade da informação. São Paulo: Saraiva, 20I6, p. 255-256.

[2] Idem, p. 258.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Bett Brasil.

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