Aprender é coisa séria. Mas pode ser divertido!
Cumprindo o prometido em meu último artigo neste blog, “ Aprender deve ser um ‘fluir’, não um ‘sofrer’ ”, hoje abordarei o tema “gamificação” na educação.
Começo por criticar o próprio termo, um anglicismo derivado de “gamification”. Trata-se de um aportuguesamento totalmente desnecessário (ou seria um “semi aportuguesamento” já que, pela pronúncia corrente, a grafia deveria ser “gueimificação”?). Nossos dicionários nos oferecem uma palavra com o mesmo sentido e, na minha opinião, mais bonita: “ludificação”. Infelizmente, o termo importado, feio e impronunciável é o que predomina na literatura nacional sobre o tema. Parece que nós brasileiros gostamos de valorizar os conceitos usando estrangeirismos para identificá-los. É uma espécie de cultura da "gourmetização" terminológica. Oops, acabei de dar um tiro no pé usando um galicismo ! Sorry… oops, de novo!!! Oops: oops também é anglicismo. Ok (oops), melhor encerrar por aqui este parágrafo.
Bem, feito o registro de minha preferência pelo termo “ludificação”, seguirei usando “gamificação”, pois é assim que escrevem colegas que dominam muito mais o assunto do que eu e são minhas referências.
A primeira coisa a ser esclarecida é que “gamificar” não é o mesmo que utilizar jogos na educação. Como visto no já mencionado artigo anterior, o estado de consciência denominado flow (sim, mais um anglicismo desnecessário, sorry…) é muito comum de ser atingido por quem está engajado em uma atividade lúdica, mas pode ocorrer também em atividades “sérias”. A ideia por trás do conceito que trato neste texto é aplicar, no desenho de atividades que não se configuram como jogos, algumas técnicas que são bem conhecidas por designers de game e que facilitam a entrada em flow. Dessa forma, incluindo-se elementos, mecânicas e estratégias de jogos em conteúdos educacionais, estes podem se tornar mais divertidos e engajadores, sem necessidade (e sem as dificuldades e custos associados) de transformá-los em verdadeiros games.
O mesmo aluno que sente tédio e falta de motivação em estudar os conteúdos escolares ou em se dedicar ao desenvolvimento de trabalhos e atividades que lhe são solicitados pelos professores, consegue estudar com afinco e se engajar durante horas, sem perder o foco, em atividades potencialmente tediosas e repetitivas. Esse aluno não hesita em aprender, realizar pesquisas, resolver problemas, construir artefatos e tudo o mais que se mostre necessário para vencer os desafios que surgem durante um jogo, desde que esses desafios não estejam muito acima nem muito abaixo de sua competência. A gamificação procura criar condições para que esse engajamento ocorra em outras atividades, como nas pedagógicas.
A gamificação muitas vezes é confundida com inclusão de pontuações, medalhas, premiações, rankings e coisas similares. Ainda que tais elementos costumam aparecer em games, a simples inserção desses artifícios em atividades educacionais não costuma gerar bons resultados. Se as “premiações” forem os únicos elementos da “gamificação” estaremos trabalhando apenas a motivação extrínseca (tema que abordei nesta outra postagem deste mesmo blog: “Se motivar aluno é difícil, pelo menos saiba como não desmotivá-lo”). Esse tipo de motivação não costuma trazer bons resultados, porque não é autêntica, desvia o foco, desvirtua a atividade (o objetivo passa a ser melhorar as pontuações e ganhar mais prêmios, não importando os meios usados para atingi-los), incentiva a competição e inibe colaboração. A boa motivação, a intrínseca, vem do prazer de desenvolver a atividade em si, de vencer desafios, de ver sentido e propósito nas ações que estão sendo desenvolvidas. Eventuais premiações devem ser consequência e não objetivo.
Visando ilustrar as possibilidades da gamificação, apresento a seguir alguns princípios de design de games que podem ser aplicados para tornar conteúdos educacionais mais engajadores:
Objetivos: propor metas claras e viáveis, além de cuidar para que os alunos tenham consciência de que poderão atingi-las.
Desafios: assim como os objetivos, devem ser claros e equilibrados em relação às competências dos alunos; não necessariamente os desafios são subobjetivos (partes dos objetivos principais); podem ser obstáculos que apenas dificultam a caminhada até o destino final, incluídos com vistas a equilibrar desafios e competências; são infinitas as possibilidades, como por exemplo restrições de tempo ou inclusão de quebra-cabeças ao longo da “trajetória” da atividade; quanto mais relacionados ao próprio conteúdo pedagógico e à narrativa melhor, pois desafios descontextualizados podem ser elementos distratores dos objetivos pedagógicos.
Feedback: deixar o aluno ciente dos resultados de suas ações, se possível em tempo-real, ou em períodos curtos de tempo.
Progresso: tipo especial de feedback, que informa como a atividade está progredindo, o que já foi conquistado e o que falta conquistar, ou seja, a posição do aluno no trajeto de sua missão; pontuações e distinções podem ser utilizadas para esse fim, mas deve ser tomado cuidado para evitar levar o aluno a encarar tais elementos como objetivos em si, conforme já discutido acima.
Liberdade de escolha: oferecer opções e alternativas, propiciando que haja possibilidades de escolhas e decisões a serem tomadas, de forma a aumentar a percepção de autonomia;
Narrativa: bons jogos possuem narrativa e utilizam técnicas de storytelling (oops!); as pessoas se interessam por histórias, e se envolvem quando seus objetivos e desafios se inserem em um contexto, quando a atividade faz sentido e tem propósito; o envolvimento é ainda maior quando a narrativa se relaciona com grandes causas ou quando há alguma identificação com a situação.
Relacionamentos: fomentar sentimentos de pertencimento, de comunidade e empatia, propiciando colaboração, interação com pares e com a sociedade.
Protagonismo: colocar o aluno como participante da narrativa, com poder de interferir no curso dos acontecimentos o faz se sentir empoderado e presente; muitos jogos permitem que o jogador controle um personagem, que o representa e atua em seu nome no universo ficcional em que a ação se se desenrola; essa conexão entre personagem e pessoa que o controla é muito forte e ajuda a criar engajamento e interesse.
Adaptação e personalização: adaptar um ou mais dos elementos acima listados, em função do perfil e comportamento de cada aluno (ou grupo de alunos), para que produzam melhores resultados.
Se você é professor ou designer instrucional, e ainda não conhecia muito bem o conceito de gamificação, sugiro que analise atividades e conteúdos que costuma utilizar com os alunos, à luz dos elementos acima apresentados. Pode ser que identifique pequenos ajustes ou adaptações que possam ser feitos para torná-los mais engajadores. Ou talvez descubra que já são gamificados e você não sabia. Neste caso, ou se você conscientemente já gamifica ou busca conteúdos gamificados, seus alunos são felizardos, pois já devem ter descoberto que aprender é sério, mas pode ser divertido.
Cenas do próximo capítulo
Ao falar de protagonismo, mencionei a possibilidade de colocar o aluno dentro da narrativa, por meio de um personagem que o representa e atua como seu alter ego. Esse personagem também é conhecido como avatar, principalmente no contexto de metaversos. Se você não esteve fazendo um retiro nos últimos meses, sem internet nem outras formas de comunicação, certamente já leu ou ouviu falar sobre “metaverso”. O interessante é que os metaversos são ambientes naturalmente gamificados, pois já oferecem avatar, feedback, protagonismo, contexto, narrativa e relacionamentos, além de possuírem “look and feel” de games e usarem a linguagem, e a tecnologia dos jogos digitais.
Mais sobre metaversos e avatares em meu próximo texto. Até lá.
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