Educação técnica no Brasil enfrenta barreiras culturais, mas avança com novas iniciativas
A cada dois anos, o Sistema S, por meio do Observatório Nacional da Indústria, lança o Mapa do Trabalho Industrial, um estudo prospectivo que identifica a demanda futura por trabalhadores na área industrial. A edição 2024–2027 aponta a necessidade de formação de 14 milhões de trabalhadores, tanto para ingresso em uma ocupação (formação inicial), quanto para pessoas já empregadas que precisam atualizar seus conhecimentos profissionais (treinamento e desenvolvimento).
O dado destaca a importância estratégica da oferta de cursos técnicos profissionalizantes, uma vez que, dos 14 milhões de trabalhadores demandados, 2,2% são novos profissionais, muitos deles egressos da formação técnica. “A demanda por formação técnica vem aumentando, especialmente em segmentos como logística, automação, robótica, mecatrônica e manutenção. É uma demanda que exige a especialização do trabalhador e não de profissões transversais”, afirma o superintendente da Unidade de Educação Profissional e Superior do SENAI – Departamento Nacional, Felipe Morgado.
Outro ponto positivo a ser destacado diz respeito à empregabilidade e vem da OCDE: nos países em desenvolvimento, 70% dos jovens que cursam apenas o ensino médio conseguem um emprego; com o curso técnico profissional, essa porcentagem sobe para 84%. No SENAI, por exemplo, a empregabilidade atinge 86%.
“As empresas também terão que reconhecer o valor da contratação de técnicos. Sabe-se que um técnico tem produtividade 16% maior em comparação com um trabalhador que fez apenas um curso de qualificação. Estamos falando de uma necessidade crescente na indústria por novos profissionais. O segmento de logística, por exemplo, precisará de 474 mil, construção de 179 mil, operação industrial de 171 mil e metalmecânica de 175 mil”, destaca Morgado.
Entretanto, mesmo com argumentos favoráveis, a educação técnica profissionalizante enfrenta desafios para atrair mais alunos. Morgado acredita que o que chama de “cultura bacharelesca no Brasil” prejudica a expansão da educação profissional. “Hoje, apenas 11% dos jovens que cursam o ensino médio no Brasil fazem também um curso técnico. Gosto de comparar com países vizinhos: no Chile, são 33%; no México, 35%; e, um pouco mais longe, na União Europeia, 51%. A média da OCDE é 44%. Ou seja, estamos muito distantes. A expansão, desde 2018, tem sido tímida em relação ao potencial”, avalia.
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Na visão de Morgado, o país está no caminho certo com a formação técnica no ensino médio, mas ele considera preocupante a forma como a política pública está sendo implementada. “A educação básica é uma política pública universal, ou seja, para todos. Já a educação profissional só faz sentido se estiver alinhada com a demanda do setor produtivo, do mercado de trabalho. Minha preocupação é que, como a expansão do ensino médio está sendo feita a partir de escolas públicas, com o mindset universalista, há muita oferta de cursos que não têm demanda. Por exemplo, técnico em jogos digitais talvez seja o de pior empregabilidade no SENAI.”
Segundo ele, mais de 75% das matrículas se concentram em apenas 10 cursos, mesmo que o catálogo contemple mais de 200. “Essa expansão de cursos não está alinhada com a demanda do setor produtivo. Existe um grande desconhecimento sobre os cursos técnicos e profissionalizantes. Fizemos uma pesquisa com jovens entre 14 e 24 anos, e apenas 25% conhecem pouco ou nada sobre cursos técnicos. Entre os respondentes de 14 a 17 anos, esse índice sobe para 52%. Ainda mais preocupante: estudantes de escolas públicas conhecem menos sobre essas opções do que os de escolas privadas. Outro dado interessante da pesquisa é que os jovens conhecem mais sobre programas de aprendizagem profissional, como o Jovem Aprendiz, do que sobre cursos técnicos”, revela.
Morgado defende a ampliação da oferta de cursos. Apesar de o número de matrículas em cursos técnicos estar crescendo — atualmente, ultrapassando 2 milhões —, o país ainda está longe de atingir a meta inicial de triplicar esse número, prevista no Plano Nacional de Educação. “O recurso existe. Agora, é preciso mudar a mentalidade da educação brasileira. Comunicação é o primeiro passo; o segundo é ampliar a oferta de vagas nas escolas públicas”, argumenta.
Ao analisar o cenário global, Morgado alerta para uma dicotomia que está se formando. “O mundo está fazendo escolhas. O Ocidente aposta em microlearning, cursos curtos e adaptativos, enquanto o Oriente, como a China, oferece cursos técnicos mais longos e especializados, de até 4.000 horas. Quem está certo ou errado? Só saberemos no futuro. Muitos países estão apostando na formação técnica como o futuro, pois o ‘aprender a aprender’ e o ‘aprender a fazer’ são competências fundamentais para a vida profissional.”
Impacto significativo na economia
A diretora das escolas técnicas do Instituto J&F, Maria Odete Perrone, traz outro dado relevante à discussão: uma pesquisa do Insper, em parceria com o Itaú Educação e Trabalho e o Instituto Unibanco, revela que, para cada R$ 1 investido em Educação Profissional e Tecnológica (EPT) de nível médio, o retorno na remuneração dos egressos pode ultrapassar R$ 3. A análise, baseada em 16 estudos, também indica que os formados têm 5,5% mais chances de conseguir emprego formal do que trabalhadores sem qualificação técnica.
Maria Odete, responsável pela implementação da metodologia “Empresa Educadora” no Grupo J&F, ressalta a importância de integrar educação e negócios. “A formação técnica sempre foi vista como menos relevante, voltada para pessoas simples, sem muitas oportunidades. Diferentemente de outros países, onde profissões técnicas são essenciais, no Brasil ainda há preconceito”, comenta.
Apesar dos avanços, ela aponta que muitas escolas técnicas no país ainda oferecem ensino superficial. “A formação técnica poderia preparar os estudantes de forma muito mais robusta. Em alguns lugares, o ensino técnico não dá ao aluno as condições necessárias para competir no mercado de trabalho.”
Maria Odete destaca ainda a relevância da escola técnica na redução da evasão escolar. “Os estudantes enxergam na escola técnica uma oportunidade de concluir o ensino médio com uma profissão e um salário. Para muitos jovens, isso é essencial.” Segundo ela, o vínculo entre empresas e escolas técnicas é fundamental. “No Instituto J&F, temos uma relação estreita com as empresas do grupo, o que garante que o currículo reflita as mudanças do mercado de trabalho.”
O Instituto J&F opera três escolas técnicas gratuitas que atendem alunos do 6º ano do fundamental ao ensino médio, com cursos em administração, tecnologia e liderança de produção. “Nossa captação é majoritariamente local, com 50% dos alunos vindos de escolas públicas e 40% de famílias com renda per capita abaixo de um salário mínimo e meio. Em 2024, tivemos 5 mil inscritos para 400 vagas”, conclui.
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